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A HISTÓRIA DE UMA TRAVESSIA

 

Este trabajo recibió una mención

Seudónimos: Lilica, Pernalonga, Margarida
Area teorico/practica: Nuevos dispositivos clínicos
Ejes desde donde interrogar nuestro quehacer: Las clínicas y sus territorios
Autores: Lic. Camila Jardim, Prof. Felipe Wachs y Lic. Rita de Cássia Maciazeki Gomes

 

A HISTÓRIA DE UMA TRAVESSIA

Introdução

            Esse trabalho apresenta uma reflexão em torno de uma prática desenvolvida por um grupo de profissionais[1] junto a moradores do Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), localizado na cidade de Porto Alegre. O referido Hospital existe a 120 anos e serve como referência em internação psiquiátrica para o Estado do Rio Grande do Sul. Ao longo da sua história introduziu algumas tecnologias de tratamento psiquiátrico, desde a malarioterapia, passando por eletrocunvulsoterapia, por tratamentos de reclusão, passando por psicofármacos até novas práticas hoje desenvolvidas a partir das recentes legislações da reforma psiquiátrica, onde cidadania e direitos humanos são pilares fundamentais. Nesse contexto introduziu-se, entre outros, o Projeto Morada São Pedro que é um serviço de residencial terapêutico onde moradores cronificados e asilados no Hospital passam a residir nas “casinhas”[2].

            A vida dentro de um Hospital Psiquiátrico não permite que se fuja de uma lógica manicomial, onde autonomia, subjetividade, individualidade ficam suprimidas. A permanência dentro dessa lógica cronifica indivíduos, que acabam assumindo a posição de objetos sem voz, vez, desejos, escolhas, direitos e deveres, gerando assim profundas relações de dependência com a instituição. Mudar-se do manicômio para uma casa é uma passagem que exige uma reestruturação da maneira de lidar com o espaço, com as outras pessoas e consigo mesmo. Não é simples. Exige atenção, cuidado e a consciência de que essa mudança não se dá de uma hora para outra, mas é um processo. É sobre esse processo, que passou a ser chamado de “transição” dentro da equipe técnica, que iremos desenvolver nossas reflexões.

Convite

Aproximar-se de alguém que há muito tempo já está por ali. Um estranho que chega em sua “casa” e lhe convida a um passeio: conhecer, percorrer novos caminhos ou, quem sabe, caminhos há muito esquecidos. Fazer-lhe um convite: quer morar em uma casa fora do Hospital?

Nosso trabalho, enquanto equipe de “transição”, iniciou com a aproximação dos pacientes crônicos asilados no HPSP há muitos anos. Esses pacientes, ao longo desse tempo, tiveram como “casa” a instituição. O hospital psiquiátrico enquanto casa, como referência pessoal do que é morar, representa uma estruturação de um sistema que produz disciplina, domesticação e formatação dos corpos. Apesar de afirmarem como casa esses espaços no hospital, não existe uma apropriação dos mesmos. O poder constituído nesses espaços é assumido pela equipe de trabalho que ocupa o lugar de “donos da casa”. Os profissionais de quem os pacientes são dependentes, estão também cronificados nessa lógica do manicômio e tem seu trabalho sustentado e organizado nessa forma de relação. O convite que trazemos a estas unidades asilares é uma provocação para que pacientes saiam dessa casa.

A aceitação do convite por parte dos pacientes é entendida, muitas vezes, pelos profissionais das unidades – “donos das casas” -  como uma perda, provocando angústias, fantasias, inseguranças. Por vezes, visualizam como se tivessem lhes tirando seu trabalho. Esses sentimentos podem gerar boicotes, seja pela simples perda do paciente ou então de uma pessoa que é ajudante nas tarefas das unidades. Afinal, são moradores que tem mais condições e que por vezes dão conta de mão de obra que falta nas unidades.

Os pacientes vislumbram no convite, no Projeto, uma via de realização de desejos. Entre eles fumar, comer coisas diferentes, tomar refrigerante, passear, viver uma outra relação com os outros e consigo mesmo. Sustentando-se no desejo abre-se espaço para que as pessoas vivenciem outras formas de subjetivação.

Aqui trazemos a representação do fora. A localização do residencial é fora da estrutura física do hospital, mas nem tanto. Por vezes, pode ser encarada como uma unidade do hospital ou uma extensão dele. Há ligação através de um  portão de acesso direto que impede a separação concreta dos serviços. O hospital continua sendo referência de atendimento. Quando acontece algum problema de saúde clínico ou psíquico recorre-se ao serviço de admissão e triagem do hospital. Para os reparos nas estruturas físicas das casas é chamado o serviço de manutenção do hospital. Os gêneros alimentícios são fornecidos pelo hospital. Além disso, existe uma das casas que é ocupada pela equipe do Projeto Morada. Essa casa, por vezes, é vista como um posto de enfermagem sendo buscado em momentos de emergências ou não. Ela, muitas vezes está no lugar daquele que vai resolver os problemas que surgem no cotidiano, reproduzindo um modo de assistência manicomial.

Por outro lado, o Morada também traz o fora quando possibilita a utilização de chaves, constituição de uma individualidade e privacidade dentro de um novo modo de morar. Cada morador tem direito a um benefício mensal que permite o uso do dinheiro. O viver no Residencial Terapêutico oferece a circulação pela vila e o contato com vizinhos. A participação em assembléias fortalece o respeito e valoriza o desejo do morador. O tratamento é organizado por referências – profissionais que tomam para si o encargo de planejar, acompanhar e avaliar o conjunto de ações terapêuticas que deverão potencializar o processo de reabilitação psicossocial daquele paciente cronificado[3] - que trabalham com caso-a-caso, com a idéia de um plano terapêutico individual.

O Projeto Morada abre espaço para uma nova forma de entender, atender e se relacionar com a loucura. A loucura, aqui entendida como desrazão[4], passa  a fazer parte do cotidiano da cidade que aceita o convívio com os que estão “fora da casinha”.

Saídas pela cidade: entrada no processo

            Após o convite, contratou-se um acompanhamento que desenvolveu-se através de atendimentos individualizados onde estabeleceram-se os vínculos e os pacientes puderam contar suas histórias e construir projetos para além do hospital. Seguido desse primeiro momento, iniciou-se um movimento de apropriação de diferentes espaços: idas ao Projeto Morada, Igreja, Shopping, restaurante, padaria, lojas, parques, centro da cidade. Através dessa circulação permitiu-se uma quebra com o modo de vida do manicômio irrompendo, assim, desejos novos ou adormecidos. Pudemos perceber que os pacientes começaram a colocar-se como pessoas possuidoras de saber: eu sei fazer bordado, eu quero isso e não quero aquilo. Nesse processo retomam uma agressividade necessária para assumir-se como indivíduo cidadão e abandonar aos poucos a posição de paciente. O processo de construção de uma maior autonomia traz consigo muitas dúvidas, medos e uma ambivalência entre a tutela hospitalar e a liberdade que o Projeto Morada oferece. Optar por entrar no processo implica estar disposto a viver o novo, o incerto, o inusitado, a sair da mesmice, da certa rotina cronificada do hospital.

            O descer[5]  precisa ser compreendido como um processo de passagem que envolve diferentes tempos: o tempo da instituição (manicômio), o tempo do Projeto Morada, o tempo do sujeito, o tempo das equipes de trabalho, o tempo dos residentes do grupo de transição, o tempo da psicose.

            O tempo do sujeito passa pelo amadurecimento e afirmação do seu desejo de descer, pelas condições de manter-se nas atividades de vida diária de forma mais autônoma, pela própria condição de assumir-se como indivíduo. Percebemos que esse tempo  é, também, atravessado por outros dois tempos: por um lado o tempo lentificado da instituição tutora, onde cada dia parece ser vivido como sendo sempre o mesmo, um tempo que não exige uma implicação do indivíduo para que as coisas aconteçam; e por outro lado, o tempo de movimento exigido pela transição que envolve comprometimento, tomada de responsabilidade, trânsito e circulação por diferentes espaços .

No que se refere a efetivação da descida vivemos um paradoxo entre diferentes tipos de tempos. Entre o nosso tempo acelerado, enquanto residentes, que avaliava e requeria a concretização de um espaço de transição dentro da equipe do morada e os tempos lentificados da instituição, das equipes com as quais estávamos trabalhando. Assim fomos adentrando as unidades de moradia, contatando os pacientes e propondo a descida, logo. Foi a maneira que encontramos para compor uma espaço de trabalho, do qual poderíamos consolidar um fazer. Percebemos, que o nosso tempo acelerado trabalhava em descompasso com os demais tempos envolvidos no processo. 

            Num segundo momento, as saídas pela cidade começaram a se fazer de forma coletiva, passando a se constituir a partir daí o grupo da transição. Concomitante, a isso, fizemos a combinação com a equipe do morada de criar um espaço dentro do projeto, no qual as pessoas pudessem experimentar um outro viver, associado a uma série de atividades de vida diária numa casa.

Casa de passagem

A constituição da casa de passagem trouxe segurança para o grupo de residentes da transição quando a equipe do morada, que até então estava muito envolvida com a demanda de trabalho e o processo de municipalização, toma posicionamento favorável a criação da casa de passagem. Ressaltamos que esse espaço foi viabilizado quando dois moradores que faziam parte do Projeto “sobem” de volta, retornam ao hospital. A casa de um deles, já mobiliada torna possível a realização de atividades de vida diária, como cozinhar, armazenar comidas, limpar a casa, dormir e  conviver enquanto grupo.

As atividades na casa de passagem acontecem duas tardes por semana. Conta com a participação de cerca de dez pessoas e cada uma delas tem um residente como referência.  Passaram a ser realizados almoços, lanches, cafés, limpeza da casa, compras de mantimentos, armazenamento de alimentos, uso do fogão, freezer, geladeira. A Casa de Passagem também tornou-se um espaço de reflexão sobre as relações entre as pessoas que freqüentavam o lugar pois algumas vezes aconteceram brigas, desentendimentos, mas principalmente porque aquela casa seria um espaço de morar coletivamente. A necessidade de convívio mediado por relações de respeito torna-se fundamental, uma vez que o Projeto prevê que até quatro pessoas dividam o espaço de uma casa.

Começam a ser desenvolvidos contratos de trabalhos coletivos, com esclarecimentos e combinações a respeito da função da casa de passagem. A partir das combinações houve a organização de listas de compras e contribuição na aquisição das mesmas.  Tivemos momentos de vivência de compras nos recursos oferecidos pela cidade, como supermercados, armazéns, restaurantes.  Essa circulação trouxe à tona várias circunstâncias-problema que precisávamos juntos dar conta, como: atravessar a rua,  negociar e escolher produtos,  falar em nome próprio.

Considerações Finais

Como toda transição, essa travessia apresenta-se cerceada de impasses e momentos inusitados que germinam do acompanhar no cotidiano dos sujeitos.

Durante esse caminho até agora percorrido, muitas pessoas se aproximaram, porém somente algumas permaneceram e estão enfrentando o difícil processo de mudança. Outras pessoas se afastaram do processo de transição por estarem vivenciando um tempo onde essa mudança ainda não cabia, ou estavam em outro processo, como o caso de uma paciente que se reaproxima da filha após vinte anos e está em processo de alta.

Outra questão que vale a pena ressaltar é o fato de que esse processo de transição imprime diferença, mudança não somente nos moradores com quem trabalhamos. Marca, também, diferenças no sentido de provocar rupturas com o que estava instituído em nós, residentes, que mergulhamos no processo de transição e nos espaços da cidade por onde os sujeitos loucos circularam, ou seja, nos caixas de supermercado, nos garçons, nos transeuntes que passavam pelas ruas. Vivemos a loucura provocando nas pessoas essa ruptura e gerando um impacto – o impacto da diferença, que desloca as pessoas de um lugar previsível para um lugar de quebra de conceitos que já estavam estabelecidos proporcionando, assim, reflexões e, quem sabe, a estruturação de um novo paradigma.

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[1] Residentes do Programa de Residência Integrada da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul, com Ênfase em Saúde Mental.

[2] Termo utilizado pelos moradores.

[3]  Valentini, W, et all. A reforma psiquiátrica no cotidiano. São Paulo, Hucitec, 2001.

[4] Peter Pal Pelbart

[5] Pela estrutura geográfica da localização do Hospital e do Projeto, passou-se a utilizar "descer" como a ida para as casas do Morada e "subir" como ida ao Hospital.

 
Articulo publicado en
Noviembre / 2004